sexta-feira, 19 de outubro de 2012


Currículo escolar: limites e possibilidades
Ricardo Tescarolo
Podemos dizer que ensinar, uma das funções essenciais da escola, é promover a
“transposição didática”  de conhecimentos, um processo que torna os saberes
“ensináveis,exercitáveis e passíveis de avaliação” e em que é possível distinguir três fases de
transformação:
1ª - da cultura extra-escolar para o currículo formal;
2ª - do currículo formal para o currículo real;
3ª - do currículo real para a aprendizagem efetiva (cf. Chevallard, apud Perrenoud, 1993, p.
25).
E para que isso se realize, a escola precisa construir um currículo que:
- concilie os conhecimentos científicos que presidem a produção moderna e o exercício da
cidadania plena, a formação ética e a autonomia intelectual, as competências cognitivas e as
sociais, o humanismo e a tecnologia;
- considere as múltiplas interações entre os conteúdos das disciplinas e a abertura e a
sensibilidade para identificar as relações entre escola e vida pessoal e social, entre o aprendido
e o observado, entre o aluno e o objeto do conhecimento e entre a teoria e suas conseqüências e
aplicações práticas como pressupostos decisivos de sua organização;
- reconheça a linguagem como elemento primordial para a constituição dos conceitos, relações,
condutas e valores, o conhecimento como construção  coletiva e a aprendizagem como
mobilizadora de afetos, emoções e relações humanas (cf. Coll, 1997);
- selecione o que de fato é relevante e consistente no conjunto extraordinário de conhecimentos
hoje disponível, o que impõe à escola o compromisso de propiciar ao professor o
desenvolvimento da capacidade de ‘mapear’ os conhecimentos relevantes na escala adequada
às necessidades e possibilidades dos alunos.
Ora, essa tarefa reconhecidamente não é fácil. E uma das maiores dificuldades
para a sua realização está na prescrição, na maioria das escolas, de um currículo legal e formal
que reproduz uma colcha de retalhos de informações  descontextualizadas e fragmentadas,
moldada por uma tradição pedagógica anacrônica e inócua, para dizer o mínimo.
É como se desejássemos ajudar uma pessoa a visitar algum lugar maravilhoso
que conhecemos há muito tempo. Para orientá-la, desenhamos um mapa. Porém, nosso mapa se
baseia em informações ultrapassadas e desfocadas, engavetadas em algum canto poeirento da
memória. É pouco provável que este mapa seja eficaz. O terreno mudou. As referências são
outras. Muitas indicações não existem mais, enquanto outras surgiram alterando o panorama. 2
Precisamos estudar novamente a área e promover um levantamento atualizado
antes de criar um mapa útil, capaz de servir de orientação segura em um terreno que não
apenas pode ter mudado sua aparência externa, mas sua própria natureza.
O currículo escolar é um mapa ainda mais especial,  pois, à parte essa função
cartográfica básica, deve fornecer orientações sobre um território desconhecido na ocasião em
que está sendo desenhado!
A escola não pode mais fixar sua visão no dedo que  aponta, mas olhar para
aquilo que o dedo aponta: uma constelação de novos conhecimentos que, além de representar o
recurso mais importante do mundo contemporâneo, é uma das instâncias em que a
solidariedade se realiza como um dos elos mais fortes entre os membros da espécie humana, o
que exige a reflexão
1
 sobre o próprio conhecimento, atitude que nos compromete e constitui,
em última análise, o fundamento de toda ética.
E não será esta ética — o ethos desconstrutivo do saber contemporâneo —, que
nos possibilitará transformar este conhecimento em substância da ação humana (até porque é a
sua ignorância que deflagra boa parte dos problemas do mundo)?
É ingênuo, pois, imaginar que a escola continue incólume à evidente e
inexorável metamorfose paradigmática. E no momento  em que estas novas cientificidade e
racionalidade a atingem, seu universo pedagógico também se transforma (e por acaso não é o
que já está acontecendo?).
Disso decorre a exigência de estratégias diversificadas (mais raciocínio e menos
memória; mais significado e menos informação), procedimentos e atividades de “reinvenção”
do conhecimento, um relacionamento das disciplinas em projetos de estudo, pesquisa e ação
(interdisciplinaridade) e a contextualização dos conteúdos.
Por isso, pensamos uma organização curricular orientada por:
(1) uma visão orgânica do conhecimento, coerente com essa metamorfose da racionalidade,
caracterizada por uma abordagem renovada e renovadora que trate os conteúdos escolares e as
situações de aprendizagem de modo a destacar as múltiplas interações entre as disciplinas do
currículo; e,
                                               
1
 O processo de reflexão, conforme nos propõe Kemmis, implica “a imersão consciente do homem no mundo de
sua experiência [...] carregado de
conotações valore, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos.”
Além disso, a reflexão:
- expressa uma orientação para a ação e se refere às relações historicamente situadas entre pensamento e a ação;
- pressupõe relações sociais;
- expressa e serve interesses particulares de natureza humana, política, cultural e social;
- reproduz ou transforma ativamente práticas ideológicas;
- é uma prática que exprime o poder de reconstrução social (apud Nóvoa, 1992, p. 103). 3
(2) uma abertura e uma sensibilidade capazes de reconhecer o nexo entre o conhecimento e
os contextos contemporâneos da vida social e pessoal.
O currículo é por natureza uma rede de sentidos capaz de estabelecer uma
relação ativa entre o aluno e o objeto do conhecimento e de relacionar, dialeticamente, o
aprendido com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações práticas.
Mas um grande obstáculo se interpõe: a realidade imediata, na medida em que a
educação escolar incorpora uma rotina metodológica  conservadora muito resistente que
considera os objetos isolados e estáticos, plenamente construídos e definitivos. Portanto,
grande parte dos problemas decorre não apenas de eventuais deficiências do conhecimento
científico ou da sua organização histórica, mas, sobretudo, da própria realidade (cf. Demo,
1998).
Logo, cumpre superar
2
 uma visão fragmentada do conhecimento e da realidade
e propiciar ao aluno um conjunto articulado de conhecimentos significativos, i.e., a partir do
que ele já sabe
3
, porque o futuro da ciência está situado muito mais nas investigações
interdisciplinares do que na especulação isolada. Isso implica um planejamento coletivo e um
trabalho cooperativo dos professores, pois é exatamente isso o que significa
interdisciplinaridade.
Mas, como o ‘sábio universal’ é reconhecidamente inviável hoje, seja pela
diversidade de disciplinas, seja pela complexidade do conhecimento no interior de cada uma
delas, devemos considerar, além da complexidade necessária, aquela possível considerando um
currículo real em ação.
Encontramos, porém, ainda outros problemas que atrapalham o discernimento
da complexidade do currículo — sua ‘transversalidade’ —, como é o caso da dificuldade de
conjugar uma atuação genérica com uma intervenção especializada, sem dúvida
imprescindível, uma vez que as realidades complexas exigem uma investigação aprofundada e
conhecimentos especializados. Caso contrário, corremos o risco de generalização e
superficialização, ou mesmo de justificativa para uma visão equivocada por se pretender
eclética.
Assim, uma postura que equilibre o aprofundamento verticalizado com uma
perspectiva mais abrangente pode permitir que os conhecimentos, embora especializados,
                                               
2
Usamos superação no “sentido dialético de negar e absorver” (VÁZQUEZ, A.S. Filosofia da Práxis. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977, 2ª edição, p,6)
3
Se eu tivesse que reduzir toda a psicologia educacional a um único princípio, diria isto: O fator mais importante
que influencia a aprendizagem é aquilo que o aluno já conhece. Descubra o que ele já sabe e baseie nisso os seus
ensinamentos” (AUSUBEL, D.P; NOVAK, J.D.; HANESIAN, H. Psicologia Educacional.Rio de Janeiro:
Interamericana, 2ª edição, 1980, frontispício). 4
venham a se convergir, constituindo, por enquanto utopicamente, um novo objeto de estudo,
uma antropologia fundamental, enfim, uma ‘transdisciplinaridade’ que dependerá, contudo, de
uma formação tão acurada dos professores que estimule, além da pesquisa e da elaboração
individuais e de uma racionalidade técnica, o manejo mais amplo dos saberes pedagógicos
como um projeto reflexivo e solidário alimentado pela profundidade e pelo confronto constante
e convergente.
Neste ponto, não podemos deixar de colocar o trabalho como o contexto mais
importante da experiência curricular por ser, como campo de preparação profissional, espaço
decisivo de exercício de cidadania, de práticas sociais, políticas, culturais e de comunicação, de
convivência humana, de consciência ecológica e de qualidade de vida. Neste contexto, o
currículo articulará os objetivos, os conteúdos e as mediações pedagógicas de modos inéditos e
não será mais visto como uma ‘pista de corridas’ definida a priori, mas como uma trajetória de
transformação que enfatizará mais o corredor que está correndo e os padrões que surgem à
medida que corre e menos a pista de corridas, embora nem os corredores nem a pista possam
ser separados (cf. Doll, 1997, p. 20).
Enfim, a organização e a transformação do currículo emergirão da própria
atividade, e não a partir dela, como uma cartografia de relevâncias que se coloque no epicentro
da profunda transformação que afeta o conjunto dos conhecimentos socialmente organizados e
os catalisa.
O desafio mais importante será, então, o de “reconstruir o currículo, não tanto
como movimento que venha de fora, mas sobretudo como competência humana integrada na
velocidade dos tempos, inclusive para poder humanizar os processos inovadores”  (Demo,
1998, p. 30).
BIBLIOGRAFIA
COLL, C. Psicologia e Currículo. São Paulo: Ática, 1997, 2ª edição.
DEMO, P. Conhecimento Moderno: sobre a Ética e Intervenção do Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1998.
DOLL JR., W. E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
NÓVOA, A. Os Professores e a sua Formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 103.
PERRENOUD, P.  Práticas Pedagógicas, Profissão Docente e Formação. Perspectivas Sociológicas.  Lisboa:
Dom Quixote, 1993.
SACRISTÁN, J.G. O Currículo: uma Reflexão sobre a Prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, 3ª edição.
YOUNG, M.F.F. The Curriculum of the Future: from the ‘New Sociology of Education’ to a Critical Theory of
Learning. London: Falmer Press, 1998

sábado, 6 de outubro de 2012

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Como criar um currículo que favoreça a todos os alunos envolvidos no processo educacional, sem excluir nenhum deles?
O curriculo pode ser elaborado de acordo com a realidade educacional?

O currículo



http://www.youtube.com/watch?v=4xXGG5G1ZKI


Resultado de disputas sociais que traduzem diferentes visões e concepções de mundo, a definição dos conteúdos a serem ensinados na escola passa por um momento de grande indefinição e apostas diversas